sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Arabésque

Sara aguardou que a porta se fechasse. Dava tudo para estar sozinha. Sairam as últimas pessoas que compareceram ao funeral do avô.

Sentiu alívio por ter, finalmente, a casa só para si, um espaço agora vazio de presenças e cheia de molduras espalhadas pelos móveis modernos. Subiu as escadas e dirigiu-se á porta do seu quarto. Hesitou ao entrar, mas num suspiro cansado e derradeiro entrou na divisão ampla e cheia de luz. Parecia-lhe crime estar um dia tão bonito estando tão triste e sozinha.
A cama, perfeitamente arranjada, gritava agora para que alguém se deitasse nela e Sara correspondeu a esse pedido.
Tirou os sapatos pretos de cunha, massajou os pés moídos de ter estado em pé grande parte do dia, a fazer aquilo que o pai teria de fazer, se não se tivesse afogado em álcool outra vez; ficou a receber as pessoas, a ouvir as condolências e pêsames e a dar atenção a quem recordava o avô com o mesmo tom lamurioso. Despiu o blazer preto e atirou-o despreocupadamente para cima da cadeira junto á ampla janela de vidro. Deitou-se na cama, de olhos fechados e recordou a frase que o risonho avô, de cabelo grisalho e bigode da mesma tonalidade tantas vezes lhe dissera quando se sentia triste "- Nunca estarás sozinha enquanto eu estiver por perto e, mesmo que não esteja, estarei sempre a olhar por ti, meu pequeno anjo!" e recordou também o beijo na testa com que sempre terminava a frase.
Era tão real, ele estava ali! Estendeu os braços como quem pede um abraço em silêncio, na esperança de alcançar o avô, mas este, com o mesmo sorriso sereno que Sara tão bem lhe conhecia, parecia afastar-se cada vez mais, tanto que Sara viu-se obrigada a correr para o tentar alcançar. Ofegante e sem forças, viu o avô desaparecer ao longe com o mesmo sorriso ligeiro, como se deslizasse. O clarão que envolveu o avô no momento em que Sara caiu com os joelhos no chão encadeou-a.
Acordou com um peso enorme no peito, como se um tanque de guerra lhe tivesse passado por cima, o cansaço era extremo, estava ofegante e, quando levou a mão á cara, reparou que estava molhada. Teria estado a chorar? Quanto tempo estivera a dormir?
A luz brilhante do sol continuava a iluminar o quarto em tons vermelhos e quentes e quando as brancas nuvens se dissipavam, clarões de luz invadiam a toda a força a ampla divisão.
Levantou-se. Uma tontura. Levou a mão á cabeça, cerrou os olhos e os dentes na esperança de que passasse.
Desceu as escadas descalça. O avô sempre lhe dissera para que não o fizesse para que não lhe arrefessecem os pés, ou ainda se constipava. Esta memória trouxe-lhe um sorriso tão involuntário e tão ingénuo como se de uma criança se tratasse. Tão ingénuo que até sentiu um aperto no estômago, de culpa, por ter sorrido em tal altura.
A sala, apesar de ter um ar acolhedor, com os sofás familiares e a mobília moderna, a sala que tempos antes estava cheia de presenças alegres, parecia agora fria e despida.
As plantas haviam secado e o cinzento da parede tomou agora mais sentido do que nunca. Sentiu um arrpeio percorrer-lhe a espinha e apenas uma lágrima atrevida correu pelo rosto cansado.
Dirigiu-se até ao cadeirão onde o avô se sentava todos os fins de tarde para lhe contar uma história de outros tempos ou inventada, mesmo agora que Sara já estava a entrar na idade adulta, nunca dispensou das histórias do avô. Ele tinha um dom, o dom de contar as histórias como ninguém, imitando as vozes, alternado os tons, metendo mistérios e muitas gargalhadas á mistura.
Sentou-se e enroscou-se, como fazia no colo do avô e ficou a ver o pôr-do-sol. O choro tornara-se agora compulsivo e estava a molhar o braço do cadeirão. Controlou-se com a última réstia de forças que ainda lhe sobrava e levantou-se, caminhando em direcção á gaveta a que o avô chamava "a gaveta dos tesouros". Quando era pequena. pensava que guardava jóias e moedas encontradas num baú pirata, trazido pelos grandes galeões das histórias do avô. Mas os tesouros que guardava eram outros: antigas cartas de amor á avó, isqueiros oferecidos e de formatos nunca antes imaginados e, aquilo que Sara mais prezava...a caixinha de música.
Pegou na caixa de madeira e passou a mão por cima da tampa, exibindo os retalhes e arabescos elaborados. Abriu-a... Arabésque, Debussy...A sua música favorita. Fora o avô que, através dessa pequena caixinha de música lhe incutira o gosto pela música clássica.
Poisou a caixinha na mesinha de café e ajoelhou-se, debruçando-se sobre a mesa e fitando com ternura a pequenina bailarina de prata que continuava a rodopiar mecanicamente. Enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto, indo ao encontro do sorriso saudoso e ternurento, Sara foi apenas capaz de murmurar duas palavras:
"- Obrigada Avô!"

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